quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FERREIRA GULLAR - MUITAS VOZES

01. DADOS DO AUTOR
José Ribamar Ferreira Gullar (São Luís MA 1930)
Publicou seu primeiro livro de poesia, Um Pouco Acima do Chão, em 1949. Recebeu prêmio, em 1950, pelo poema Galo, no concurso literário do Jornal das Letras, do Rio de Janeiro. No ano seguinte mudou-se para o Rio de Janeiro e passou a colaborar na imprensa carioca com poemas e críticas de arte. Publicou A Luta Corporal (1954) e Poemas (1958). Entre 1955 e 1959 participou da primeira fase do movimento da Poesia Concreta. Em 1959 rompeu com o Concretismo e publicou o Manifesto Neoconcreto no Jornal do Brasil. A partir de 1961 participou do movimento de cultura popular, integrando o CPC e a UNE. Foi preso, em 1968, e seguiu para o exílio político na Europa em 1971. Em 1975 foi publicado Dentro da Noite Veloz; seguiram-se Poema Sujo (1976), Antologia Poética (1977). Em 1977 recebeu o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano. Nos anos de 1980 publicou Na Vertigem do Dia (1980), Toda Poesia (1980), Crime na Flora ou Ordem e Progresso (1986), Barulhos (1987); na década de 1990 saíram Formigueiro (1991) e Muitas Vozes (1999), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia em 2000. Inicialmente adepto do Concretismo, Ferreira Gullar posteriormente optou por uma poesia mais discursiva, em que os versos ora incorporam elementos da literatura de cordel, como em João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer (1962), ora se voltam para as tensões sociais e políticas do homem brasileiro, como em Dentro da Noite Veloz (1975) e Na Vertigem do Dia (1980).

2. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR
"A passagem brusca da linguagem precisa e requintada das vanguardas para a expressão apoiada na linguagem simples dos cantadores, seguida de uma visão ingênua a respeito das questões estéticas e sociais e somada às derrotas da esquerda na América Latina, à clandestinidade e ao exílio contribuíram para que Ferreira Gullar reconsiderasse suas posições, buscando na poesia uma forma de expressar suas mudanças e seu aprofundamento de visão de realidade. Publicado em 1976, Poema Sujo, ´discursivo e quase um poema clássico´, segundo Ziraldo, é um livro de 103 páginas em que Ferreira Gullar exprime a totalidade de suas experiências no plano da vida e da literatura, por meio de versos assimétricos e dissonantes, carregados de paixão corporal. Na Vertigem do Dia, o reiterado questionamento sobre a poesia, as preocupações com os grandes temas do homem e da América Latina, as recordações da infância, a dor, a tristeza, a solidão e a solidariedade para com os menos favorecidos são os temas explorados por poemas curtos e herméticos em sua maioria."
Brait, Beth [1981]. Ferreira Gullar: a poesia como forma de indagação e conhecimento do mundo. In: Gullar, Ferreira. Ferreira Gullar. p.101.
"O pós-modernismo de 45 raiado de veios existenciais, a poesia concreta e neoconcreta, a experiência popular-nacionalista do CPC, o texto de ira e protesto ante o conluio de imperialismo e ditadura, a renovada sondagem na memória pessoal e coletiva... são todos momentos de uma dialética da cultura brasileira de que Ferreira Gullar tem participado como ator de primeira grandeza. À luz dessa leitura, contextual, a consciência que ditou o Poema Sujo não é exatamente a mesma que inventou A Luta Corporal, assim como a maturidade do escritor e cidadão pós-64 superou os seus horizontes ideológicos dos anos cinquenta. Não se trata de evolução na ordem dos acertos estéticos (estes não dependem, mecanicamente, da posição política do poeta); trata-se de um ver mais concretamente a História, um julgar mais criticamente o próprio lugar de poeta na trama da sociedade, um refletir mais dramaticamente a condição do homem brasileiro e do homem latino-americano sem medusar-se no fetiche abstrato, no fundo egótico, do ´homem´ em geral."
Bosi, Alfredo [1983]. Roteiro do poeta. In: Gullar, Ferreira. Os melhores poemas. 3.ed. p.8-9.
Ferreira Gullar estreou muito jovem com A luta corporal. “O nome do livro – diz o poeta – não é por acaso: era uma luta comigo mesmo. Na minha busca terminei fragmentando a linguagem. Achava que a linguagem era uma realidade. Desarticulei-a para encontrar essa realidade: ela não tinha essência nenhuma.”
Logo em seguida, o autor maranhense aproxima-se dos concretistas de São Paulo. Contudo, abjura-os em pouco tempo. Após esta ruptura, e sob o influxo da radicalização ideológica do início dos anos 60, vincula-se ao pensamento progressista da época, todo ele ligado às formulações populistas do presidente João Goulart. Rapidamente Ferreira Gullar torna-se um dos porta-vozes dos artistas politicamente engajados daquela década.
Publica então dois polêmicos livros de ensaios Cultura posta em questão (1965) e Vanguarda e subdesenvolvimento (1969). Também o teatro o atrai. Ajuda a fundar o grupo Opinião e escreve com Oduvaldo Viana Filho a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Com Dias Gomes escreve a peça Dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Já os poemas, publicados apenas em jornais e revistas da época, confirmam o engajamento do autor e revelam certa tendência panfletária e uma freqüente queda no prosaísmo. Muitos desses poemas foram reunidos, mais tarde, em Dentro da noite veloz. Um deles, Agosto 1964, é bastante conhecido:

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques
viajo
num ônibus Estada de Ferro – Leblon
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções de juventude, adeus,
que a vida
eu a compor à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
Mas não ao mundo. Mas não à vida,
Meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira.

Mas é com o Poema sujo, 1975, que Ferreira Gullar encontra a solução dos impasses políticos e estéticos que impediam-no de realizar uma poesia de primeira grandeza. Politicamente, ele rompe com o comprometimento explícito das obras da década de 1960, preferindo embutir a questão social nas ações e lembranças que o poema evoca. Esteticamente, ele consegue através de uma expressão livre e ousada (mas não formalista) – uma legítima “tempestade de versos”, como disse um crítico – mergulhar na sua vida pessoal: a infância e a adolescência em São Luís, o passado próximo e o remoto, descobrindo a realidade brasileira e a sua própria interioridade a partir do exílio em outros países. A grande força da obra nasce do fato de Ferreira Gullar obter desta sucessão caótica de passagens existenciais o retrato vivo de um homem brasileiro (um intelectual, na verdade), em seu conjunto de angústias e esperanças, gozos e tormentos individuais. Por outro lado, este homem traz consigo, através dos tortuosos caminhos da memória, um contexto provinciano, o Maranhão, a quitanda do pai, o Brasil dos anos de 1930 e 1940, tudo magistralmente evocado. Mas o que de fato projeta o Poema sujo para além do documento humano e histórico são as interrogações contínuas do poeta a respeito da permanência e da transitoriedade das coisas. O Poema sujo é também um poema sobre a passagem do tempo, sobre o esquecimento e sobre o caráter único das experiências de cada ser:

(...) bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era...
Perdeu-se na carne fria (...)
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do
Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos louça que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecido entre os pés de erva cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida.

Após seu retorno ao país em 1977, Ferreira Gullar tornou-se o poeta emblemático da redemocratização brasileira, voltando a ter forte atuação na área cultural. Escreveu para a tevê, militou na crítica de arte e debateu a situação da poesia. Em seus últimos livros, a temática da passagem do tempo e a da morte – já presentes no Poema sujo – adquiriram predominância e significativa pungência.


OBRAS PRINCIPAIS:
A luta corporal (1954);
Dentro da noite veloz (1975);
Poema sujo (1975);
Na vertigem do dia (1980);
Barulhos (1987);
Muitas vozes (1999).


3. CARACTERÍSTICA DA OBRA
Muitas Vozes
CRISTIANE COSTA
Muitas vozes ao gênero que o consagrou como um dos mais importantes autores brasileiros. Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas vozes revela uma mudança de tom na obra de Gullar. "Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo, mas como reflexão", comenta.
Muitas vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira. Nascido no Maranhão em 10 de setembro de 1930 como José Ribamar Ferreira, já sob o pseudônimo de Ferreira Gullar, o poeta lançou seu primeiro livro, Roçzeiral, aos 19 anos. Tinha apenas 24 quando publicou A luta corporal, uma obra radical que abriu caminho para a poesia concreta no país. "No começo, havia a busca por uma linguagem que transcendesse o discurso lógico, que fosse além da própria poesia como era feita até então, e que terminou por implodir a linguagem. Como conseqüência dessa implosão, veio a poesia concreta", reflete hoje o poeta.
Cinco anos mais tarde, Ferreira Gullar romperia com o movimento para criar outro, o neoconcretismo, esboçado no ensaio Teoria do não-objeto e que culminou com o famoso poema enterrado no chão.
Uma nova virada aconteceria no início dos anos 60. Fiel ao clima da época, Ferreira Gullar voltou-se para a cultura popular, impregnando-se da linguagem do cordel. Da época, datam João Boa-Morte e Quem matou Aparecida, além das peças Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Vianna Filho e Dr. Getúlio, com Dias Gomes. Presidente do CPC da Une quando aconteceu o golpe militar, Ferreira Gullar se exilou na Argentina em 1971.
"Abandonei o neoconcretismo porque considerei que essa experiência estava esgotada. Isso coincidiu com uma virada da política brasileira, com a posse de João Goulart. Empolguei-me pela possibilidade de transformação social e minha poesia acompanhou isso", recorda Gullar. Segundo o poeta, essa reconciliação com a linguagem coloquial foi fundamental para definir novos rumos para sua obra. "Minha poesia de hoje é desdobramento disso. Costumo dizer que a poesia nasce da prosa. O que existe é a linguagem de todos. Uso e abuso dela, até da palavra chula. Nunca busquei o poema puro. Não me preocupo com experimentalismos ou estéticas verbais. Quero um poema que nasça da vida", afirma.
Foi no exílio que Ferreira Gullar escreveu seu livro de maior repercussão, Poema sujo, De volta ao Brasil, publicou uma série de ensaios sobre artes plásticas, sua segunda paixão, como Argumentação contra a morte da arte, além de uma Antologia poética. Barulhos, editado em 87, foi seu último livro de poemas. No ano seguinte, escreveu suas memórias em Rabo de foguete.
"Quando terminei Barulhos, tive a sensação nítida de que tinha me esgotado e não voltaria mais a escrever. Imaginei que a fonte tinha secado. Perdi a motivação e me senti vazio. Passava os meses sem ter vontade de escrever", conta Gullar. "Cheguei a passar um ano sem produzir um poema."
Mas, um belo dia, a fonte voltou a jorrar. Num quarto de hotel de Nova Iorque o poeta retomou a palavra. "Meu Pai" é dessa leva. A produção seria interrompida várias vezes até que, em 1994, Gullar conheceu sua atual mulher, a jovem poeta Cláudia Ahimsa, na feira do livro de Frankfurt dedicada ao Brasil. "Isso para mim foi um renascer. Passei a escrever com muito mais freqüência. Foi um encontro inspirador", revela, sem medo de parecer um poeta romântico e comum.
Em Muitas vozes ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
"Eu mesmo não acredito que estou chegando aos 70 anos. Nunca pensei que chegaria lá. Para mim, ano 2000 era algo impensável", afirma. No entanto, a idade lhe reservou boas surpresas, junto com a descoberta do amor tardio. "Nunca pensei que 70 anos fossem isso. Estou totalmente saudável, em plena vida", alegra-se o poeta, que parou de fumar há 10 anos e cortou a carne vermelha, as frituras e gorduras do seu cardápio, para dar uma ajudinha à sorte. "Não gosto de contar vantagem não. A gente sabe que é mortal, mas nem sempre se lembra ... felizmente."
Cristiane Costa é subeditora de Idéias

O silêncio e muitas vozes - * Davi Arrigucci Jr.
Desde o princípio, por tudo o que já fez, Ferreira Gullar sempre nos deixou esperando a grande poesia. E ela veio de novo calmamente, depois de um silêncio profundo,como um tumulto; chegou agora com Muitas Vozes. Há muito não se juntavam, na poesia brasileira, tantas coisas belas numa safra só.
Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos, até a estridência. E ainda assim de tudo ficar um pouco - o galo saiu de entre as plantas em novo anúncio; Cláudia Ahimsa virou musa do planeta Terra; o bem-te-vi cantou de volta em São Luís -, para só então a poesia mostrar-se como não-coisa, como voz, essa voz que somos nós, que não alcança o ser da coisa, que quer ser coisa na linguagem do poema, e é apenas som.
Mas som com sentido: testemunho de nossa precária condição frente aos astros e à única eternidade que de fato conhecemos, a do instante de vida: a polpa, o gosto vivo da fruta, o momento do sexo, tudo na íntegra irrecuperável na Palavra. Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens. Recolhe a poesia das vozes entrelaçadas à sua, com toda a simplicidade. A grande poesia pode estar ao rés da fala e ao alcance dos ouvidos.
No oco da voz (do poema) se forma o sentido que o poeta atribui às coisas que não o têm e cujo ser resta impenetrável para ele como o morto na cova. A força do concreto vem, no entanto, do instante de vida que fica na memória e toma forma poética na linguagem: a voz que não quer se apagar, que repete outras vozes mortas e refaz com palavras o gosto de alegria da hortelã, ou o que, intangível, adeja/ acima/ do que a morte beija.
A complexidade da síntese poética que se acha neste livro em que os temas da identidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o silêncio e a morte é o resultado formal de uma longa e densa experiência. É importante observar que o processo de constituição dessa experiência foi exposto, em boa parte, no relato notável de suas memórias do exílio, Rabo de Foguete. Nele o drama vivido pelo poeta à mercê das circunstâncias políticas da história recente da América Latina se converte, mediante uma narrativa próxima do romance, num processo de escavação da subjetividade atravessada pela experiência histórica. A poesia - O Poema Sujo - surge então, em em meio ao sofrimento,como o último reduto da identidade pessoal frente às catástrofes do mundo contemporâneo.
Mas, nesse embate, é a morte que já ronda na pegada dos desastres, exigindo um outro sentimento do tempo e um novo aprendizado. Como é próprio de seu modo de ser, a forma do romance se desdobra no processo de aprendizagem, quando faltam regras de como proceder e justamente essa insuficiência se toma fato no enredo. Rabo de Foguete - coloca essa questão desde o começo, ao relatar os rumos da existência errante depois que a vida virou de cabeça para baixo. A poesia vem agora resgatar em fortes e vívidas imagens os guardados da memória.
Sob muitos aspectos, a matéria deste livro é a mesma, configurada, porém, em ritmo de verso, com outra concentração e intensidade. Não mais sob o hausto longo da narração, mesmo se na cadência entrecortada pelos capítulos curtos das memórias, mas, sim, condensada no instantâneo, recorta do fundo histórico e pessoal da experiência seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. Na verdade, figuras de uma dança da morte, que o poeta traz de novo à nossa presença, não pela mão, como no tópico medieval da dança macabra, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua, a voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemas breves em que se tece na forma quebrada do ritmo o diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação de Silêncios, 0 Morto e o Vivo. Complexos e límpidos poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo. Extraordinários poemas longos de pressentimento e antecipação da morte: Nova Concepção da Morte, Morrer no Rio de Janeiro. E ainda muito mais, belos poemas, eróticos e de exaltação da vida e seus instantes fugazes: Definição da Moça, Sortilégio, Coito, Improviso Matinal, Pergunta e Resposta.
A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretensão e a humildade, exposto com todas as suas fragilidades, exatamente como nas memórias, está de novo presente aqui. Com efeito, é um homem frágil quem está atrás da voz que nos fala, sozinho como o caniço
pensante de Pascal em face do infinito silêncio do cosmo. 0 poeta que reconhece que a poesia/ é saber falhar. Ou aquele que, ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da certeza invencível da morte, também se dá conta da realidade palpável de sua presença no mundo. É na solidão cósmica, isolado dos mortos queridos onde o poema é apenas um inaudível ruído em meio à vastidão indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capaz no entanto de iluminar aos nossos olhos não só a morte, mas também o amor e o gosto da vida
A lírica se exprime aqui nos ocos de uma história vivida e lembrada, talhada no corte breve e emocionante do poema, supondo, porém, o processo oculto de um aprendizado diante do que arrasta a tudo e a todos junto com o próprio poeta e que está além de toda experiência possível: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem ênfase, 'mera noção que existe/ só enquanto existo', o fim que está fora de seu alcance.
Depois de 12 anos de silêncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, à luz de São Luís. Não se podia pedir mais a Gullar.

*Davi Arrigucci Jr. é ensaísta, professor de literatura e autor, entre outros livros, de Outros Achados e Perdidos (Companhia das Letras).

4. ENTREVISTA DE FERREIRA GULLAR
O poeta Weydson Barros Leal, entrevista novamente o poeta Ferreira Gullar, [12 de julho de 1999], a propósito do livro MUITAS VOZES, Ed. José Olympio, 1999.

WEYDSON - Depois de 12 anos sem publicar poesia em livro, 'Muitas Vozes" seria uma comemoração de 50 anos, já que seu primeiro livro, "Um pouco acima do chão", é de 1949?
GULLAR - A rigor está certo. Mas eu não levo em conta esse cálculo. Eu publiquei agora pensando nisso... Na verdade, eu passei esses 12 anos sem publicar apenas porque eu não tinha um número suficiente de poemas para constituir um livro. A partir de 1994, 95, quando eu conheci a Claudia (Claudia Ahimsa, poeta, namorada de Gullar) e saí da Funarte, houve unia retomada. Em 96 já havia alguns poemas, mas eu preferi deixar que aquele veio poético que estava se manifestando se esgotasse. Porque a minha poesia funciona um pouco como a mineração. De repente eu descubro esses veios até esgotá-los. A partir daí eu passo um tempo sem escrever. Assim, quando eu percebi que tinha um número suficiente de poemas, pensei: chegou a hora de publicar.
WEYDSON - Lendo o livro, percebe-se que esse veio é de temática variada, há poemas sobre a vida, a morte, reminiscências da infância, etc...
GULLAR - Pois é. No poema "Evocação de Silêncios", o silêncio é o tema. Ali, tudo nasceu de uma lembrança de quando eu era garoto em São Luís, perto do Largo de Sant´Aninha, onde tinha uma casa com um corredor que ia da calçada até o fundo. O piso dessa casa era de um tipo muito comum naquela época. Então eu lembrei de ter entrado nessa casa numa tarde de muito sol, enquanto brincava por ali, mais o i met7os 2 horas da tarde nessa hora em São Luís a barra é pesada, com muito calor - e eu entrei para descansar um pouco Eu já tinha um certo hábito de sentar ali, naquele chão frio, naquela casa silenciosa - lá, parece que morava apenas um casal idoso...
WEYDSON - Eles lhe, viam?
GULLAR - Não.. Tinha um corredor muito vazio... Eu ficava sentado tio chão frio, olhando aquele corredor, aquele piso, o silêncio, o vazio... Então, de repente, me veio a lembrança de tudo isso, e isso gerou o poema... Eu pensava que ia escrever só um poema, mas o primeiro desencadeou outros, e assim foi uma série de poemas que envolvem a quitanda do meu pai..
WEYDSON - E daí o açúcar...
GULLAR-É.. Na quitanda do meu pai, abaixo das prateleiras de mercadorias, havia uns depósitos com tampas, onde tinha feijão, arroz--, açúcar, farinha... Eu lembro que cabia bastante, açúcar naquele depósito. Quando se levantava aquela tampa, vinha aquele cheiro cálido... E até hoje, mesmo em casa, quando eu abro um recipiente de açúcar, me vem aquela sensação, o cheiro cálido. Então, tio poema, o silêncio é o açúcar, é comparado ao açúcar, e está cheio de vozes. de tumulto. de alarido, da luz da manhã.. Esses são os veios de que eu falo.
WEYDSON - A segunda parte do livro "Muitas Vozes", você intitulou "Ao Rés da Fala". O que há nesse título?
GULLAR - Ali está a saída de um impasse. Quando eu terminei de escrever o último poema de "Barulhos" (I 9 8 7), eu percebi que havia nele muitos elementos prosaicos. Na minha visão, o poema é o lugar onde a prosa se transforma em poesia, é o lugar da metamorfose, onde o processo se dá. O poema não é uma coisa estática, terminada, ele é algo em processo. A leitura desencadeia o processo que está latente ali. Ao lê-lo, o leitor transforma a palavra em poesia. Naturalmente, o meu poema nunca é um poema puro, mas nele a prosa vira poesia, e portanto para haver poesia tem que haver a transformação. A gente sabe que o carvão dá o fogo, mas para haver o fogo tem que existir o carvão. Assim, no poema sempre haverá fogo e carvão.
WEYDSON - E cabe ao poeta realizar a mistura , e determinar quando o fogo é suficiente, quando já há mais fogo que carvão...
GULLAR - Em "Nasce o poema" (Barulhos, 1987), eu cheguei à conclusão que havia carvão demais. Então eu pensei: se eu puser mais prosa aqui, o avião bate no chão, não há mais como... E durante um certo tempo eu parei.
WEYDSON - Como- resposta a esse mergulho, "Ao Rés da Fala" seria um recuo?
GULLAR - Não, eles avançam, e são quase prosa. Porque neles não há a alquimia evidente que há normalmente em minha poesia, onde a palavra se choca com outra palavra.. Não há a palavra inesperada nesses poemas. _Há quase somente descrição, como no poema "Fotografia de Mallarmé".
WEYDSON - Eu discordaria apenas quanto à ausência da surpresa, da palavra inesperada, uma vez que o primeiro poema do livro ("Ouvindo apenas") é extremamente elaborado, visceralmente sofisticado...
GULLAR - Quando eu digo que esses poemas são prosa e que há neles um processo diferente, não é a alquimia' Ali há uma superação do discurso diferente do que eu fazia em outros poemas. Na verdade, eles dão o tom do livro. Eu estou de acordo com você quando diz que os primeiros poemas são muito elaborados, mas, por exemplo, o primeiro poema é bem anterior aos outros.
WEYDSON - A organização do livro, à exceção dos "Poemas Resgatados', atende a uma ordem cronológica?
GULLAR - Quase sempre eu adoto essa ordem cronológica porque acho que a minha poesia é uma reflexão.
WEYDSON - Vejo que há poemas em "Muitas Vozes" cujos temas já aparecem em livros anteriores a "Barulhos".
GULLAR - É verdade Mas eu prefiro não interferir nisso; ninguém controla o processo da lida. Mas há uma lógica interna nesses poemas. Aí estão indagações e respostas que se sucedem progressivamente. Isso não quer dizer que eu desenvolva um processo filosófico, mas são perguntas e respostas que vão ocorrendo durante a vida, por alguma razão que eu não sei mas que sei que existe. Eu acredito que o meu trabalho com a poesia é a lúcido, exigente, do artesão, mas o que faz o poema nascer, os elementos convocados para fazê-lo, isso eu deixo que venham como vier. Como se eu fosse um metalúrgico que trabalha com qualquer metal, que não fica exigindo prata ou ouro. Com o metal que ele acha que dá, ele faz.
WEYDSON - Como seria esse processo, dando como exemplo um dos poemas de "Muitas Vozes"?
GULLAR - Por exemplo: o poema "Um Instante ". Num domingo à tarde, nessa sala vazia, o sol, o silêncio e a claridade, eu sentei aqui (apontando uma cadeira) e de repente senti que estava pleno, leve, não tinha passado, não tinha futuro, sem culpas, sem remorsos, sem preocupações - era um instante, dois segundos que estão neste poema (pegando o livro e lendo o poema):

Aqui me tenho
como não me conheço nem me quis
sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Mas você ainda pode perguntar por que eu fiz o poema, e aí eu vou formular aqui, pela primeira vez a sua gênese: ele é o resultado da reflexão de alguém que pensa sobre o passado, nos problemas da memória, nas coisas que acabaram, e que ao mesmo tempo são um peso sobre sua vida. Então, o momento em que nada disso pesa, é um momento de liberdade e plenitude. De repente eu compreendo que estar sem mim é uma liberdade total. Por isso eu digo que é. um processo de pensamento que não é consciente mas que está sendo feito, e o poema nasce disso. Por isso eu penso que ao alterar essa ordem, eu posso estar violentando um processo mais profundo de reflexão que está tio poema.

WEYDSON - Mas eu percebo no_ livro, ao lado de poemas que podem ser resultados desses processos, outros que parecem revelações instantâneas, como o poema "Tato".
GULLAR - É mais ou menos o mesmo processo... Eu sentei ali (apontando), passei a mão na cabeça, e de repente toquei meu osso. Aí eu pensei: -puxa, sou eu, eu existo, e em vez de dizer como Descartes "penso, logo existo,", é o, contrario , "toco, logo existo" (risos). Em vez de me afirmar pelo pensamento, eu me afirmo pelo tato. Então eu existo aqui, e se isso vai acabar, se não houve antes, se é efêmero, não interessa, eu estou aqui concretamente. Agora, por que eventualmente alguém passa a mão na cabeça e não pensa isso? Por que outros poetas, que fizeram o mesmo gesto, não escreveram esse poema, e eu é que escrevi? Porque eu tenho um tipo de reflexão que faz com que esse ato gere uma resposta determinada. Talvez por isso as pessoas estejam dizendo que esse livro é um livro maduro, por e estão vendo que é um livro decorrente de uma reflexão que que vai sendo feita apesar de mim, uma reflexão subjacente, que termina provocando os poemas em face disso, quer dizer, de pequenos acontecimentos que se refletem nesse modo de ver o mundo. Essa é a razão por que esse "tato me faz escrever o poema e o mesmo tato experimentado por outros poetas não os faz escrever ou faz com que escrevam outro, ou ainda que nem dêem importância a isso...
WEYDSON – Em 'Muitas Vozes', há reminiscências de infància, lembranças de pessoas que passaram por sua vida e não estão mais aqui, e há os "Poemas Resgatados", aqueles que estavam nas gavetas. Depois do livro impresso, você ainda teve a sensação de que faltava algum poema, de que faltava alguém?
GULLAR - Eu custei a entregar o livro ao editor. A Maria Amélia, minha querida amiga (diretora editorial da José Olympio), me cobrou muito o livro depois que leu uma entrevista em que eu dizia que o livro estava terminado. Mas eu fiquei ainda quatro meses lendo os poemas, largava, voltava, foi assim até nascer outro poema, que eu ainda incluí no livro, quando só então eu o dei por encerrado.
WEYDSON - E a idéia dos "Poemas Resgatados"? Como foi tirá-los da gaveta?
GULLAR - Eu já te contei essa história- Em 1970, um pouco antes de ir para o exílio, eu escrevi um poema sobre a minha casa em São Luís do Maranhão. Lá, naquela casa de assoalho de tábua corri ia um espaço de quase meio metro entre as tábuas e o chão. Às vezes caía dinheiro por entre as fendas, eu tirava uma tábua e entrava ali para buscar minha moeda que estava lá embaixo. Havia um cheiro forte, de décadas, de todo aquele pó, um pó preto que parecia pólvora . O poema era sobre isso, sobre a casa, essas coisas. Bem, ele estava escrito, mas eu ainda não sabia se estava pronto. A verdade é que eu tive de sair de casa correndo quando começou a minha vida clandestina, e não voltei mais. Quando eu já estava em Moscow, eu lembrei do poema, procurei entre as coisas que tinha levado e terminei pensando: perdi o poema. Foi aí que eu decidi reescrevê-lo, e já em 1975 ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz". O poema se chama "A casa ", e foi então traduzido em várias línguas, despertando interesse em muita gente, como nos meus tradutores nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na Argentina, na Holanda.. Alguns anos depois, de volta do exílio, eu abri uma pasta de manuscritos que encontrei e lá estava o poema original, que agora está em "Muitas Vozes".
WEYDSON - Como ele se chama agora?
GULLAR - "Sob os pés da família ". Mas então, quando eu li o poema que achei, era outro poema O tema era o mesmo, mas o que eu tinha escrito era outra coisa. Eu estava certo que tinha reconstituído tudo, e de repente era outro poema. Evidente que alguns pedaços são idênticos ou parecidos, mas é outro poema. Isso me provocou uma reflexão: se eu não tivesse perdido esse poema eu não teria escrito o outro. Quer dizer, a possibilidade de um mesmo tema gerar poemas diferentes. Porque a gente tem a suposição de que o poema que a gente escreve é a única forma possível do que se quer dizer, mas está provado que não é...
WEYDSON - Então esse poema tem quase 30 anos...
GULLAR. - É...(pensando)...ele é de 70. Mas entre os "Poemas Resgatados" há poemas ainda anteriores, quer dizer ..(em dúvida) ... pode haver alguns para frente... São poemas que foram apenas anotados.. Por exemplo: quando eu trabalhava na sucursal do Estadão (Jornal Estado de São Paulo) aqui no Rio, eu ficava sozinho lá no meu canto, anotava certas coisas, mas não dava tempo, os caras vinham, "ô Gullar, escreve esse texto aqui! ", e tal coisa... Então interrompia aquilo e eu fui tendo na minha gaveta um monte dessas anotações. Quando eu saí do Jornal, peguei tudo, pus dentro de uma pasta e trouxe para casa. E essa coisa ficou aí, guardada em outra gaveta.
WEYDSON - E como você achou?
GULLAR - É uma coisa estranha... Eu sou um organizado dispersivo - organizo tudo mas depois não acho: tá guardado em algum lugar, onde eu não sei. De repente eu fico achando, coisas "guardadas" que estavam " perdidas ". Foi assim que eu encontrei esses poemas. Quando eu comecei a ler, pensei: eu poderia dar uma forma definitiva a isso. Então trabalhei os poemas. Os "Poemas Resgatados" não estão como foram escritos, entretanto, eu os trabalhei com o espírito com que foram escritos. Eu tentei me reintegrar naquele ambiente e retomar os temas, as coisas..
WEYDSON - Haverá lançamentos fora do Rio de Janeiro? (O lançamento oficial no Rio ocorreu em 12 de julho de 1999).
GULLAR - Eu pretendo fazer o lançamento lá em São Luís do Maranhão. Eu estou devendo essa ida à minha mãe, a meus irmãos, pois eu disse que iria no ano passado e não pude, tive que cancelar. Você sabe que tem um poema aqui (pegando o livro 'Muitas Vozes") que foi escrito lá em São Luís?
WEYDSON - Nos "Poemas Resgatados"?
GULLAR - Não, nos novos. Eu escrevi tia última vez que estive lá, há uns três anos. Chama-se "Volta a São Luís ". É um poema do exílio ao contrário. Porque o Gonçalves Dias, quando escreveu o dele ("Canção do Exílio") estava tio exílio, e manifestou aquele sentimento, de forma muita bonita. "as aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. " Quer dizer, elas são aves, estão cantando, eu estou ouvindo, mas não é a mesma coisa. E essa carência da sua terra, da sua pátria, foi manifestada por ele de forma muito especial. No caso do meu poema, eu estava num hotel lá em São Luís, com um jardim enorme, lindo, mas onde mal se consegue dormir porque muito cedo os bem-te-vis começam a cantar: "bem-te-vi, bem-te-vi, te-vi, te-vi... " E é uma algazarra. Aquilo foi gozado, porque onde eu morava, quando era menino em São Luís, também era cheio de bem-te-vis. Então, de repente, ouvindo esses bem-te-vis, eu estava ouvindo os bem-te-vis de minha infância, não era só aquele pássaro que estava ali, era o contrário, e o poema diz assim (pegando o livro e lendo o poema):

Mal cheguei e já te ouvi
gritar pra mim: bem te vi!
E a brisa é festa nas folhas
Ah, que saudade de mim!

O tempo eterno é presente
no teu canto, bem te vi

(vindo do fundo da vida
como no passado ouvi)

E logo os outros repetem:
bem te vi, te vi, te vi

Como outrora, como agora,
como no passado ouvi

(vindo do fundo da vida)

Meu coração diz pra si:
as aves que lá gorjeiam
não gorjeiam como aqui

Aí foi o contrário (risos). O Gonçalves Dias sentiu longe que as aves que lá gorjeavam não gorjeavam como na sua terra; eu volto à minha terra, e ao ouvir o bem-te-vi percebo que as aves que gorjeiam . fora de São Luís, não gorjeiam como em São Luís. E olha que quando eu estava escrevendo o poema, eu não estava prevendo esse fim...

WEYDSON - Em cada poeta, a sensibilidade se exercita ou se manifesta das mais diferentes formas. Em você, eu percebo algo muito curioso: a sua sensibilidade é igualmente apurada nos cinco sentidos, na audição dos "barulhos", dos "alaridos", no olfato que percebe o "grito" do açúcar, no tato de seu próprio corpo, na visão do sol, das coisas, no paladar das frutas que apodrecem... Ou seja, enquanto a maioria dos poetas trabalha muito mais com a percepção visual ou com a memória dessa percepção, você elabora seus poemas com igual densidade a partir da percepção ou da memória dos cinco sentidos.
GULLAR - Eu nunca tinha percebido isso, mas você está dizendo uma coisa que é verdade. Eu sou muito sensorial, todas as coisas me tocam, as sensações têm um poder muito forte sobre mim: o cheiro das coisas, o tato, os sons (não só os musicais, mas o barulho, o silêncio - a ausência do barulho), e a coisa visual, que me é muito intensa. Eu acho que a percepção visual é a percepção mais inteligente, a mais humana. Eu digo mais humana porque as outras sensações são mais obscuras, ou seja, o olfato, o faro, é bem animal, assim como de certa forma o tato e a audição. E embora a audição não seja tão obscura, ela é incontrolável, os sons, os barulhos, te penetram independente de tua vontade; você não fecha o ouvido como fecha o olho. O ouvido não tem pálpebras. Por isso eu entendo muito bem quando o João (João Cabral de Melo Neto) diz que a música desarruma as coisas. Para que ' m é muito mental,. muito racional como o João é - que tem a necessidade de ser, porque ele é um homem muito sensível e tem a necessidade de controlar a sensibilidade - então, ele tem de criar aquela forma objetiva, estruturada, controlada, para não se desintegrar. Nesse sentido, a música vem e acaba com toda ordem. Ela tem uma ordem, mas é dela, não é a tua, da tua razão, da tua lucidez, pois o mundo é organizado por nós a partir da percepção visual Nós percebemos as distâncias, os objetos, a claridade do dia, mas todo esse conhecimento tem por base a percepção visual
(...)

5. FRAGMENTOS DA OBRA

MUITAS VOZES
Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

Inventário
Vivo a pré-história de mim
Por pouco pouco
eu era eu
José de Ribamar Ferreira Gullar
Não deu
O Gullar que bastasse
não nasceu

That Is The Question
Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?
Aceito
ou detono o poema?

Sob a Espada
mas que sentido tem tecer palavras e palavras
- amoras
auras
lauras
carambolas -
com esta mão mortal
enquanto o tempo luze sua espada
sobre mim?
Para que armar mentiras
se a água é água se a água é nuvem (entre meus pés) se a folha é por si só lâmina verde e corta e se meus dentes estão plantados em mim?
nesta gengiva sim
que sou eu mesmo
e unha e ânus
e anca e osso
e pele e pêlo
e esperma e
escroto
com que invento
um verso torto

Nasce o Poeta (parte 7)
Na Quitanda
A moça baunilha
uma flama negra
na quitanda morna
confunde o sorriso
com o sorrir das frutas
seu cabelo de aço
era denso e bicho
seu olhar menina
vinha da floresta
sua pele nova
um carvão veludo
sua noite púbis
uma festa azul
misturada ao mel
no calor da tarde
durou dois segundos?
uma eternidade?
ela aquele cheiro
de casa de negros
de roupa engomando
rua do Coqueiro?
ela sua saia
de chita vermelha?
hoje pe uma pantera
guardada em perfume

Nasce o Poeta (parte 10)
A coisa e a Fala
a boca não fala
o ser (que está fora
de toda linguagem):
só o ser diz o ser
a folha diz folha
sem nada dizer
o poema não diz
o que a coisa é
mas diz outra coisa
que a coisa quer ser
pois nada se basta
contente de si
o poema empresta
às coisas
sua voz - dialeto -
e o mundo
no poema
se sonha
completo

Meu Pai
Meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
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GILBERTO DIMENSTEIN - MENINAS DA NOITE

01. DADOS BIOGRÁFICOS
Nascido em 28 de agosto de 1956, em São Paulo, Gilberto Dimenstein, articulista da Folha de São Paulo, é reconhecido como um dos principais jornalistas investigativos do país. Autor de reportagens de repercussão nacional e internacional ganhou vários prêmios de jornalismo nos últimos anos, entre eles dois prêmios Esso e dois prêmios Libero Badaró de Imprensa. Suas reportagens transformaram-se em livros de sucesso, "Meninas da Noite"; "A República dos Padrinhos" e "Conexão Cabo Frio", além de "O Complô que elegeu Tancredo", este realizado com outros jornalistas. Dimenstein iniciou sua carreira em 1977, na revista Shalon e, até ir para a Folha, passou pelo O Globo, Jornal do Brasil, Correio Brasiliense e revistas Veja e Visão.

02. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
O jornalista Gilberto Dimenstein, durante seis meses, investigou a rota do tráfico de meninas na Amazônia, viajando pelo submundo da prostituição infantil. Esse inquérito tece como resultado o livro "Meninas da Noite". E tem um subtítulo bem apropriado ao tema: "A prostituição de meninas-escravas no Brasil".
Com bastante propriedade, o autor usa a expressão meninas-escravas, visto que se trata de um mercado de gente. O que acontece nesse submundo da sociedade é tão-somente uma caricatura do que acontece em todos os outros planos: a mercantilização humana. Absolutamente tudo tem seu preço hoje em dia, inclusive seres humanos.
O livro de Dimenstein explica os motivos da prostituição. Como não se trata de um livro científico, e sim de um livro de relatos apresentados de uma forma jornalística, não há uma seção do texto que se pode chamar de “Causas e motivos da prostituição". Esses motivos não são elevados de forma sistemática, mas soltas ao longo de todo o livro. Abaixo alguns trechos que tentam explicar as várias causas da prostituição:
"A recessão jogou suas filhas na rua”.
"Mais uma causa da prostituição: a garota se entrega ao mercado. A família não aceita, ela vai embora. Sem qualificação, só lhe resta vender o corpo".
"Para elas, (a rua) é um ambiente mais familiar e por incrível que pereça mais aconchegante que do que a própria casa.”
“... as meninas índias, que na tribo nunca conheceram a surra, o estupro, doenças venéreas e, muito menos, a prostituição. São todas doenças do homem branco."
"... a menina índia vem para a cidade. Não tem estudo e, se não consegue trabalhar como doméstica está no caminho da zona de prostituição”.
“Seu padrasto bebia muito e muito. Quando se embebedava tornava-se
violento. Tentava transar com a filha adotiva. Ela saiu de casa e (...) virou escrava (...) não consegui mais abandonar a prostituição”.
"Uma das senhoras daquele bairro queria reformar a casa (...) para conseguir os recursos a virgindade de suas filhas foi vendida a peso de ouro.”
Há um condicionamento econômico que pode aumentar a propensão da marginalidade infantil. O menino de rua, com o desajuste familiar ou desassistido econômica e efetivamente busca sobreviver para a violência, roubo ou o delito. A menina, sob essas mesmas condições, segue o caminho da
prostituição. Todavia, viram-se trechos transcritos do livro que não é necessário recorrer ao lugar-comum e achar que as causas da prostituição infantil são, tão-somente, econômicas. Há também aspectos psicológicos e sócios envolvidos na questão.

03. RESUMO DA OBRA.
Durante 6 meses, Gilberto Dimenstein investigou a rota do tráfico de meninas na Amazônia, viajando pelo submundo da prostituição infantil. Cada passo da investigação é relatado com detalhes, mostrando como é a vida dessas meninas e um pouco de sua história, e como foi possível encontrar traficantes e um cativeiro de meninas-escravas protegidos pela selva amazônica.
BELÉM
Em Belém, o jornalista encontra-se com Maria de Lurdes Araújo Barreto, 49 anos. Prostituta desde os 16 anos, depois de ser estuprada pelo filho do patrão. Tem 4 filhos e 2 netos. Maria de Lurdes dirige o Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central (Gempac). Ela o auxilia na rota que deverá seguir para encontrar os cativeiros das meninas-escravas e em como se aproximar delas para conseguir as entrevistas.

IMPERATRIZ
Em Imperatriz, visita a Casa da Dalva, lugar que recebe a elite local, onde se fazem leilões de meninas virgens. Nessa cidade, descobre que as meninas se entregam à prostituição na esperança de se casar: “Estou aqui procurando marido. Muitas meninas e mulheres viram gente de sociedade, conhecendo seus maridos no puteiro. Tenho esperança.”
É também apresentado à Francisca Ferreira (Chica Bagaço), prostituta que desenvolve trabalho educacional com filhas de meretrizes há 17 anos. Chica Bagaço o leva à periferia e lhe apresenta Ana Paula Ferreira da Silva, 13 anos, grávida, prostituída pela mãe adotiva, que é dona de bordel. Chica também conta a história de Adriana Pereira Lima que mora em seu prostíbulo, “a família não aceitou a perda da virgindade com o namorado e ela foi expulsa. Sem estudos, só lhe restou vender o corpo”.

LARANJAL DO JARI – Beiradão
Janaína Patrícia Pereira, 14 anos, serviu de guia em Laranjal do Jarí. É prostituta a vários anos e não sabe onde estão seus pais. Apresenta Luciene Cavalcanti dos Santos, 15 anos, que foi trabalhar na boate atraída por uma oferta de emprego como faxineira. Também Luíza Ribeiro Soares foi atraída com promessas de emprego como cozinheira. Conseguiu sair da boate por que um namorado, que a queria em casa, pagou sua dívida.
Ainda em Laranjal, entrevista Elaine dos Santos, 15 anos, que é aliciadora de meninas-escravas. Diz que não está arrependida e acha que essas meninas são trouxas. Uma das meninas aliciadas por ela é a própria irmã, Miriam dos Santos, que conseguiu fugir com a ajuda de um padre. Ana Meire Lima da Silva conta que, se não dormisse com homens, ficava sem comida, trancada no quarto e ainda tinha que pagar aluguel. Já Cláudia Amaral, 13 anos, não quer sair da boate porque adora dançar e conhecer pessoas novas. Durante o dia trabalha como babá, mas prefere a boate.

MANAUS
Maria Sanchez, 15 anos, está nas ruas de Manaus desde os 8 anos de idade. Teve um filho e sua mãe, antes de morrer, deu o menino. Durante a entrevista chora muito porque não sabe onde começar a procurá-lo. Sem pai, sua única irmã, Socorro Sanchez, 13 anos, lhe faz companhia nas ruas. Ela diz que cansou de levar calote por isso cobra adiantado.
Junto com elas está Edvalda Pereira da Silva, 11 anos, diz saber o que é camisinha mas não usa porque não acredita “que se não usar dá uma tal de Aids”. Sua mãe trabalha no meretrício e não se importa com suas transas. Ela se acha igual às outras meninas que fazem programa, levanta a camiseta e brincando diz que tem apenas uma diferença: “Eu ainda não tenho peito.”
Outra de suas amigas é Francineide Cavalcanti,14 anos, que saiu de casa por causa do padrasto que tentou violentá-la e a mãe foi passiva. Sem ter onde trabalhar, começou a vender o corpo.

PORTO VELHO
Em Porto Velho se destaca, além do tráfico de meninas-escravas, o tráfico de drogas, por ser próximo à Bolívia. As meninas são usadas como “formiguinhas”, que entregam as drogas para proteger o cafetão, que garante o seu vício.

RIO BRANCO
Raimunda, mãe de Maria Luíza, 12 anos, conta que ao chegar a casa e não encontrar a filha, pediu ajuda às vizinhas. Uma delas advertiu ter ouvido a conversa de que um homem a levaria para Porto Velho. Foi à delegacia e os policiais a encontraram quase atravessando o rio. A menina acreditava que só ia passear.
Em Rio Branco, o principal foco da prostituição são as meninas índias, que se vendem por cachaça, roupas, comida. Os “marreteiros”, comerciantes que viajam de barcos, sempre levam cachaça na bagagem e trocam por sexo. O ex-cacique Raiaou confessa que um deles pediu para dormir com sua filha: negócio feito por 12 garrafas. Diz que só não gostou quando pediram sua mulher. Outro fato comum são as curras, como conta o índio tucano Gabriel Gentil: “Eu vi com meus olhos como uma mocinha chamada Larita, de 18 anos de idade, foi agarrada por 11 recrutas brancos do Exército. Eu os vi trepando em cima dela e se satisfazendo no corpo da moça durante a noite: desde às 8hs até as 3hs da madrugada.” O coronel defende seus soldados dizendo ser as índias que tentam estuprá-los quando elas estão no cio.

CUIABÁ
Em Cuiabá, o jornalista entrevista várias meninas na Praça do Porto. A maior preocupação dessas meninas é o medo de se apaixonarem.
Rosinete Miranda Pereira, 13 anos, fugiu da boate por causa da violência. Ela conta que ganhou várias vezes a “aposta do peitinho”. Um jogo onde as meninas levantam a blusa para que os seios passem por um exame meticuloso, por parte dos jogadores, que apostam naquela que tem os seios mais rijos. Diz que havia torneios mais incômodos: “Eles apostavam quem conseguia transar mais tempo sem sair de cima da gente”. Ela ficou irritada com a acusação de que as meninas da Praça do Porto tinham Aids: agora só anda com um certificado médico no bolso.
Cleuza Santos de Jesus, 17 anos, saiu de casa porque o padrasto quando bebia, além de bater, queria seu corpo. Nas ruas engravidou, deu o filho e ignora seu paradeiro: “Só sei que deve estar vivendo muito melhor com outros do que estaria comigo.”
Cacilda Duarte, 16 anos, conta que já tentou trabalhar, mas não consegue ficar muito tempo num emprego. Acredita que é por causa das tatuagens que possui no corpo. Seu namorado, preso por tráfico de entorpecentes, não sabe como e quando vai sair da prisão, e parte dos rendimentos de Cacilda na rua é transferida pra ele.
Dora, 14 anos, estava grávida de 6 meses quando a polícia invadiu o garimpo e espancou todos, inclusive ela, fazendo com que perdesse o bebê. Amigada com um japonês, não sabia que ele era traficante, por isso vive mudando de cidade com medo de que a polícia a pegue. Costuma dizer que “dinheiro não mão, calcinha no chão.”
Jociane Silva dos Santos, 9 anos, está sozinha, seus pais estão mortos. Circula pela praça com outras meninas, que estão a ensinando a “cair na vida”. Para ela, Aids é uma doença que vem da água.

ALTA FORESTA
Maria Aparecida da Silva, ao completar 11 anos, vendeu sua virgindade por uma boneca que não ganhou. Enganada 2 vezes com a mesma promessa, abandonada e deprimida, acabou numa creche. Foi adotada e hoje está bem.
Quando tinha 9 anos, Tatiane Cristina de Sousa foi estuprada. Por causa da virgindade perdida, ela tornou-se motivo de aposta numa boate. Dois rapazes duvidaram quando uma amiga lhes disse que aquela garotinha com cara de anjo e cabelos encaracolados não era mais virgem. Após ser devidamente embebedada, eles esclareceram a dúvida no banheiro da boate.
Luciana Fátima Pinheiro, revoltada com o fato de a mãe levar homens pra casa, resolveu fugir. Para sobreviver, foi obrigada a fazer aquilo que condenava na mãe, até encontrar uma creche. Nunca mais se prostituiu.
Ivonete Dias dos Santos trabalhava na cozinha de uma boate, cuja dona a convenceu das vantagens de vender o corpo. Sua virgindade foi anunciada como a atração da noite. Embebedou-se e foi levada para o quarto. Só se lembrou do que aconteceu quando, ao acordar, viu uma mancha de sangue no lençol.

ITAITUBA
Márcia e Vanessa foram enganadas e acabaram no garimpo, de onde não podiam fugir. Durante a entrevista, Vanessa chorou diversas vezes e pediu ajuda para fugir. Inexperiente, Márcia já engravidou 3 vezes e se submeteu a abortos precários.
Edna contraiu malária, doença comum na região. Ela fica doente e os remédios aumentam ainda mais a sua dívida, torna-se mais difícil ir embora. Teve dificuldades de dar a entrevista por causa da febre e das dores no corpo.
Mariana dos Santos Veras, 15 anos, conseguiu fugir e foi à delegacia. No seu depoimento diz que tinham que dormir com vários homens por noite e quando não obedeciam, apanhavam. Outras meninas que conseguiram fugir porque os garimpeiros se apiedaram delas (Raimunda, 14 anos; Zara e Jane, 16 anos; Poliana, 17 anos) dizem que “na boate é normal matarem e espancarem as mulheres”.
Maria Domingas Rabelo Frazão foi convidada a trabalhar numa lanchonete na região do garimpo. Acabou aprisionada numa boate transformada em cativeiro. Era forçada a ter relações sexuais várias vezes por noite. Ela fugiu embrenhando-se na selva.
Vileni Reis de Almeida havia acabado de chegar de uma boate, desde os 13 anos faz programas. Ficou lá por vários meses e não conseguiu pagar a dívida. Considera-se uma felizarda porque os donos da boate a deixaram ir embora.

CUIÚ-CUIÚ
Uma cidade com apenas 2 ruas, onde moram 510 habitantes (dos quais 72 são meninas e mulheres prostitutas), possui 32 boates na cidade. A polícia local recebe contribuições das boates pela “proteção”. O jornalista não pode revelar o verdadeiro motivo da visita, diz que seu interesse eram as condições de saúde dos habitantes. Conversa com várias meninas-escravas. Muitas delas estava com malária.
De volta a Brasília, o jornalista prepara uma série de reportagens sobre a prostituição, tráfico e escravidão de meninas, que são publicadas na Folha de São Paulo e que ganham repercussão mundial. Com isso a Polícia Federal invade Cuiú-Cuiú, prende os cafetões e traficantes e leva 55 prostitutas.

04. ANÁLISES CRÍTICAS.
Cobertura de prostituição infantil pela mídia é sensacionalista
"Mirian não estava entendendo nada. Há três dias viajava pelo rio em busca de um emprego prometido pela irmã. Mas no porto foi recebida pelo dono uma boate. (...) Teve que amargar um mês até se libertar e ir embora da cidade". Esta é uma das meninas personagens do livro Meninas da Noite, do jornalista Gilberto Dimenstein, fruto de uma série de reportagens sobre prostituição de meninas-escravas, publicadas no jornal Folha de S. Paulo, em 1992. É justamente a cobertura de prostituição infantil feita pela Folha, entre 1985 e 1995, que o psicólogo Leandro Feitosa Andrade analisa no livro Prostituição infanto-juvenil na mídia: estigmatização e ideologia, recém-lançado pela EDUC, editora da PUC-SP com apoio da Fapesp. Na obra, Andrade questiona as campanhas em prol da infância empreendidas pela mídia, verifica como as crianças são tratadas nestas campanhas e qual o impacto delas na vida das crianças.
O autor constatou que a cobertura teve cunho sensacionalista, do tipo policial, já que o discurso jornalístico estigmatizou crianças e adolescentes pobres. "Quando o jornal recorta o tema da 'menina/adolescente prostituta' como atributo da pobreza, o estigma contra a pobreza é reavivado. O tratamento dado ao tema da prostituição infantil assume a conformação de uma campanha moral da empresa, sustentando relações de dominação dos não pobres sobre os pobres", explica Andrade.
Para o autor, apenas três elementos foram considerados nas matérias sobre prostituição infantil: a menina/adolescente, o aliciador e a família, todos vindos de um cenário de extrema pobreza. "O objeto da ação policial dirige-se ao aliciador, mas não ao cliente que compra, paga, usa e abusa sexualmente de menores. Ele é uma figura que quase nunca presente", diz o psicólogo.
Para ele, a cobertura faz uma simplificação do fenômeno, dando um tratamento excludente dos pobres e da pobreza. "Perde-se em conhecimento, não só pelas especificidades de vida que levam meninas e adolescentes, pobres ou não, a se prostituírem, mas, sobretudo, as determinações sociais, éticas e psicológicas que levam adultos a elegerem parceiros sexuais não adultos e a se comprazerem do assim chamado pornô-turismo", conclui.
Andrade acredita que a relação de dominação dos "não pobres" sobre os pobres é encoberta. Ele lembra um exemplo recente desta receita de jornalismo, no caso ocorrido na cidade de Porto Ferreira, interior de São Paulo, onde seis vereadores foram condenados por conta do agenciamento de adolescentes. "Falou-se muito da história das adolescentes e de suas famílias e pouco sobre os vereadores e demais envolvidos no esquema de aliciamento", diz.
Ao veicular as reportagens, o jornal, um importante ator social que contribui para a mobilização para implementação de políticas estatais, motivou a incorporação da “erradicação da prostituição infanto-juvenil na agenda de políticas públicas para a pobreza”. De acordo com Andrade, este movimento pode gerar equívocos na elaboração de planos governamentais para crianças e adolescentes pobres no país, por exemplo, ao optar pela generalização de acreditar que toda menina pobre é ou vai ser prostituta.
O pesquisador lembra que o jornal é uma empresa pautada pelas exigências do mercado, e ao mesmo tempo em que se coloca como porta-voz das questões sociais, pode ocorrer o uso mercantil de problemas sociais. A Folha, de acordo com o levantamento do pesquisador, veiculou esse tipo de reportagem em dias considerados nobres (como os domingos), ocupando a primeira página do jornal e destacando as meninas e adolescentes identificadas como prostitutas.
Para controlar o impacto de peças jornalísticas sobre as condições de vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, Andrade propõe um código de ética para orientar a mídia. Evitar a veiculação de matérias que reforcem o prognóstico de um destino inexorável para crianças e adolescentes em condições de vulnerabilidade; preservar a dignidade, a privacidade e a integridade física dos atores envolvidos na peça jornalística são alguns princípios defendidos pelo psicólogo para impedir a estigmatização de crianças e adolescentes na mídia.

Escravidão no Século 20 (Iale Clitias)
“A miséria jogou as meninas para as ruas. Elas não têm nada para vender. Não sabem ler, cozinhar, escrever. Só podem vender o único bem que possuem: o corpo”.
Gilberto Dimenstein
Um assunto que sempre vai trazer indignação e preocupação nacional é a prostituição infanto-juvenil. Especialistas são unânimes em afirmar que por trás de toda “prostituta-mirim”, há uma história de degradação familiar. Infelizmente, a família é o principal estímulo para este tipo de exploração, obrigando à criança ir pra rua e trazer uma determinada quantia para casa. Com medo da reação dos pais, que geralmente é violenta, acabam vendendo o próprio corpo por mixaria. Por ser um dinheiro “fácil” se tornam desde cedo “escravas sexuais”.
Foi o alarmante número de casos de exploração infantil que várias entidades do estado do Pará, entre elas o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, organizaram um dossiê chamado Crianças da Amazônia, que demonstrava a existência de centenas de meninas em prostituição escrava em vários garimpos da região norte.
A divulgação desse material chamou a atenção do jornalista Gilberto Dimenstein, que recebeu uma bolsa de estudos da MacArthur Foundation para investigar a violência e prostituição da criança na Amazônia nos anos 1991 e 1992, resultando em uma série de reportagens para a Folha de S. Paulo intitulada Meninas da Noite. Um trabalho amplo que durou um ano entre planejamento, investigação e publicação das matérias.
Dimesntein viajou por seis meses pelo Norte e Nordeste do Brasil, procurando lugares onde meninas eram escravizadas sexualmente ou quase mantidas em cativeiro. Em Cuiú-Cuiú, um vilarejo na Amazônia, meninas foram fotografadas nos cativeiros, os nomes dos cafetões apresentados, os locais que viviam e seus responsáveis foram filmados. Lá mesmo, uma das senhoras queria reformar a casa e para conseguir recursos, a “virgindade” de suas filhas foi vendida a peso de ouro!
Gilberto afirma que esta reportagem teve um efeito importante: ajudou a acordar o país para a situação da infância que é uma coisa decisiva para qualquer país. Mas não foi só o Brasil que abriu os olhos. Todo o material produzido, livro e filmagens, rodou o mundo atraindo as atenções para o País no problema da prostituição infantil, chegando a gerar um documentário no programa Turning Point da rede ABC em agosto de 1994.
Apesar do jornalista ter recebido muitos elogios pela realização desse trabalho, o pesquisador Leandro Feitosa Andrade, que escreveu sua tese de doutorado em Psicologia Social em cima da obra de Dimenstein, afirma que “houve estigmatização dos pobres e das adolescentes retratadas na série de reportagem (...) foi colocado esse tema sem se preocupar com a exposição de rostos e dos nomes das adolescentes, dos locais, dos preços do programa...”.
Diante da grande repercussão dos artigos e da mobilização de organizações não-governamentais, as autoridades do país viram-se pressionadas a se posicionar frente à prostituição envolvendo crianças e adolescentes. Em resposta, o Congresso Nacional criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1993 para apurar responsabilidades pela exploração e prostituição infanto-juvenil. Mesmo assim, com a CPI da prostituição infantil como ficou conhecida, a Justiça Federal empurrou o caso. Os oito criminosos denunciados que traficavam crianças não foram nem indiciados pelo Ministério Público. Simplesmente caiu no “esquecimento”, tanto da população quanto da mídia.
É aí que a imprensa “peca”. Do mesmo jeito que bombardeia assuntos importantes para o desenvolvimento da Nação, deveriam cobrar das autoridades as providências cabíveis. Para Gilberto Dimenstein o objetivo da reportagem foi alcançado: “chamar atenção para um tema que não era discutido no país”.
Hoje, 13 anos após a denúncia, ainda existem pelo Brasil a fora milhares de crianças que são exploradas sexualmente e que vivem nesse submundo da noite, ou como o autor descreve “escravas sexuais”. Grandes reportagens como esta, são feitas para que haja um avanço na sociedade, e quem sabe um dia o Brasil saia do 74º lugar em se tratando de qualidade de vida.

Euclides da Cunha - OS SERTÕES

BIOGRAFIA
Euclides Rodrigues da Cunha (Cantagalo, 20 de janeiro de 1866 — Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1909) foi um escritor, sociólogo, repórter jornalístico, historiador e engenheiro brasileiro.

Órfão de Cantagalo
Órfão de mãe desde os três anos de idade, foi educado pelas tias. Freqüentou conceituados colégios fluminenses e, quando precisou prosseguir seus estudos, ingressou na Escola Politécnica e, um ano depois, na Escola Militar da Praia Vermelha.
Cadete republicano
Contagiado pelo ardor republicano dos cadetes e de Benjamin Constant, professor da Escola Militar, atirou durante revista às tropas sua espada aos pés do Ministro da Guerra Tomás Coelho. Euclides foi submetido ao Conselho de Disciplina e, em 1888, saiu do Exército. Participou ativamente da propaganda republicana no jornal O Estado de S. Paulo.
Proclamada a República, foi reintegrado ao Exército com promoção. Ingressou na Escola Superior de Guerra e conseguiu ser primeiro-tenente e bacharel em Matemáticas, Ciências Físicas e Naturais.
Euclides casou-se com Ana Emília Ribeiro, filha do major Frederico Solon de Sampaio Ribeiro, um dos líderes da República.
Ciclo de Canudos
Em 1891, deixou a Escola de Guerra e foi designado coadjuvante de ensino na Escola Militar. Em 1893, praticou na Estrada de Ferro Central do Brasil. Quando surgiu a insurreição de Canudos, em 1897, Euclides escreveu dois artigos pioneiros intitulados "A nossa Vendéia" que lhe valeram um convite d'O Estado de S. Paulo para presenciar o final do conflito. Isso porque ele considerava, como muitos republicanos à época, que o movimento de Antonio Conselheiro tinha a pretensão de restaurar a monarquia e era apoiado pelos monarquistas residentes no País e no exterior.
"Livro vingador"
Euclides não ficou até a derrubada de Canudos. Mas conseguiu reunir material para, durante cinco anos, elaborar Os Sertões: campanha de Canudos (1902). O livro trata da campanha de Canudos (1897), no nordeste da Bahia. O importante é que, nessa obra, ele rompe por completo com suas idéias anteriores e pré-concebidas, segundo as quais a revolta de Canudos seria a nossa Vendéia", comandada à distância pelos monarquistas. Percebe que se trata de uma sociedade completamente diferente da litorânea. De certa forma, ele descobre o Brasil, ou um Brasil diferente da representação usual que dele se tinha.
Euclides conseguiu ficar internacionalmente famoso com a publicação desta obra-prima. Divide-se em três partes: A terra, O homem e A luta. Nelas Euclides analisa, respectivamente, as características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da região, os costumes e a religiosidade sertaneja e, enfim, narra os fatos ocorridos nas quatro expedições enviadas ao arraial liderado por Antônio Conselheiro.
Ciclo amazônico
Em 1905 percorreu a Amazônia, experiência que resultou em sua obra póstuma À Margem da História, onde denunciou a exploração dos seringueiros na floresta. Escreve, na viagem, o texto Judas-Ahsverus, considerado um dos textos mais filosófica e poeticamente aprofundados de sua autoria.
Em agosto de 1904, Euclides foi nomeado chefe da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus, com o objetivo de cooperar para a demarcação de limites entre o Brasil e o Peru. Ele partiu de Manaus para as nascentes do rio Purus, chegando adoentado em agosto de 1905. Dando continuidade aos estudos de limites, Euclides escreveu o ensaio Peru versus Bolívia, publicado em 1907.
Após retornar da Amazônia, Euclides proferiu a conferência Castro Alves e seu tempo, prefaciou os livros Inferno verde, de Alberto Rangel, e Poemas e canções, de Vicente de Carvalho.
Concurso de lógica
Visando estabilidade impossível na carreira de engenheiro, Euclides prestou concurso para assumir a cadeira de Lógica do Colégio Pedro II. O filósofo Farias Brito foi o primeiro colocado, mas a lei previa que o presidente da república escolheria o catedrático entre os dois primeiros. Graças à intercessão de amigos, Euclides foi nomeado. Depois de sua morte, Farias Brito acabaria ocupando a cátedra em questão.
"Tragédia da Piedade"
Morreu em 1909. Ao saber que sua esposa, mais conhecida como Ana de Assis, o abandonara pelo jovem tenente Dilermando de Assis, que aparentemente já tinha sido ou era seu amante há tempos - e a quem Euclides atribuía a paternidade de um dos filhos de Ana, "a espiga de milho no meio do cafezal" (querendo dizer que era o único louro numa família de tez morena) -, saiu armado na direção da casa do militar, disposto a matar ou morrer. Dilermando era campeão de tiro e matou-o. Tudo indica que o matou lealmente, tanto que foi absolvido na Justiça Militar. Ana casou-se com ele.
O corpo de Euclides foi examinado pelo médico e escritor Afrânio Peixoto, que também assinou o laudo e viria mais tarde a ocupar a sua cadeira na Academia Brasileira de Letras.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Euclides_da_Cunha
1. CARACTERÍSTICAS DA OBRA
OS SERTÕES - EUCLIDES DA CUNHA
Os Sertões dá início ao que se chama de Pré-Modernismo na literatura brasileira, revelando, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. Euclides da Cunha critica o nacionalismo exacerbado da população litorânea que, não enxergando a realidade daquela sociedade mestiça, produzida pelo deserto, agiu às cegas e ferozmente, cometendo um crime contra si própria; o que é o grande tema de Os Sertões. Em tom crítico, também mostra o que séculos de atraso e miséria, em uma região separada geográfica e temporalmente do resto do país, são capazes de produzir: um líder fanático e o delírio coletivo de uma população conformada.
Todos os importantes questionamentos e as grandes formulações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas para compreender o Brasil, antes e depois da República, tiveram seu embrião nas páginas de Os Sertões.
A obra revela, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. A transição de valores tradicionais para modernos está na denúncia que faz da realidade brasileira, até então acostumada a retratar um Peri, uma Iracema, um gaúcho, ícones do nosso Romantismo. Evidencia, pela primeira vez em nossa literatura, os traços e condições reais do sertanejo, do jagunço; "a sub-raça" que habita o nordeste brasileiro; o herói determinista que resiste à tragédia de seu destino, disfarçando de resignação o desespero diante da fatalidade. Essa ruptura de visão de mundo gera também um rompimento no plano lingüístico. A objetividade científica na abordagem de um problema leva o autor a buscar termos precisos e, nesta escolha, sua linguagem torna-se especializada e, por isso, às vezes difícil, mas que se justifica pelo objetivo de tornar exata a comunicação das idéias.
Considerada uma das obras-primas da literatura brasileira, Os Sertões, publicada em 1902, ano de sua primeira edição, cinco anos após a campanha de Canudos, cujo trágico desfecho Euclides da Cunha testemunhou como repórter de O Estado de São Paulo, apresenta não só um completo relato da Campanha de Canudos, que foi a luta sangrenta contra os fanáticos chefiados por Antônio Conselheiro, os quais ameaçavam a segurança das cidades e povoações vizinhas, mas apresenta ainda um admirável estudo da terra e do homem do sertão nordestino, das condições de vida do sertanejo, da sua resistência e capacidade, de acordo com a visão de Euclides da Cunha. Ele foi o único jornalista que atentou para a valentia dos jagunços.
Da primeira à última página, Os Sertões é uma obra que incomoda. Ele foi escrito exatamente para isso. Para instigar, provocar a pesquisa e estimular a procura da verdade. É um livro contra o conformismo. É um livro de idéias e soluções, de questionamentos e proposições ousadas. Já é lugar comum dizer que algumas de suas conceituações científicas não resistiram à evolução. Contém os vícios ou distorções típicos da época.
É uma narrativa da insurreição de um grupo de fanáticos religiosos e não só descreve a sociedade, mas também a geografia, geologia, e zoologia plana do sertão brasileiro. Com seu apurado estilo jornalístico-épico, traça um retrato dos elementos que compõem a guerra de Canudos: A Terra, O Homem e A Luta. A descrição minuciosa das condições geográficas e climáticas do sertão, de sua formação social: o sertanejo, o jagunço, o líder espiritual, e do conflito entre essa sociedade e a urbana, mostra-nos um Euclides cientificista, historicista e naturalista que rompe com o imperialismo literário da época e inicia uma análise científica em prol dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira.
A primeira parte, A Terra, descreve o cenário em que se desenrolou a ação. Euclides da Cunha, num apanhado geral, estudou os caracteres geológicos e topográficos das regiões que estão entre o Rio Grande do Norte e o sul de Minas Gerais, de modo particular a bacia do rio São Francisco. Nos sertões do norte, fala discorre sobre a seca, das causas da mesma, dando relevo especial ao papel do homem como agente geológico da destruição, que ao praticar desde os tempos mais remotos a agricultura primitiva baseada em queimadas, arrasou as florestas. Os desertos, a erosão, o ciclo das secas terríveis vieram em seguida.
A segunda parte, O Homem, completa a descrição do cenário com a narrativa das origens de Canudos. Ali Euclides da Cunha estudou a gênese do jagunço e, principalmente, a de seu líder carismático, Antonio Conselheiro. Falou de raças (índio, português, negro), e de sub-raças (que indica com o nome "mestiço"). Em O Homem o autor caracterizou o sertanejo como "Hércules-Quasímodo", usando antíteses e paradoxos (Hércules era um semi deus latino, encarnação de força e valentia; Quasímodo era sinônimo de monstrengo, de pessoa disforme, personagem de Nossa Senhora de Paris, romance de Victor Hugo). Preparando o ambiente para os episódios de Canudos, Euclides da Cunha expôs a genealogia de Antônio Conselheiro, suas pregações e a fixação dos sertanejos no arraial de Canudos.
A terceira parte, A Luta, é a mais importante, constituída da narrativa das quatro expedições do Exército enviadas para sufocar a rebelião de Canudos, que reunia "os bandidos do sertão": jagunços (das regiões do Rio São Francisco) e cangaceiros (denominação no Norte e Nordeste). Havia cerca de 20.000 habitantes no arraial, na maioria ex-trabalhadores dos latifúndios da região.
Dividida em seis subtítulos (Preliminares, Travessia do Cambaio, Expedição Moreira César, Quarta Expedição, Nova Fase da Luta e Últimos Dias) completou, por sua vez, o elenco dos personagens esboçado na segunda parte (O Homem), quer estudando-os em conjunto, como no trecho Psicologia do Soldado, quer em closes particularizantes, como no retrato físico e psicológico do coronel Antônio Moreira César.
Início da luta
As autoridades de Juazeiro se recusam a mandar a madeira que Antônio Conselheiro adquirira para cobrir a igreja de Canudos; os jagunços, então, pretendiam tomar à força o que haviam comprado e pago. Avisado das intenções dos homens de Conselheiro, o governo do Estado manda que em Juazeiro se organize uma força que elimine o foco de banditismo.
A primeira expedição - Cem homens, comandados pelo tenente Pires Peneira, são surpreendidos e derrotados pelos jagunços no povoado de Uauá.
A segunda expedição - Quinhentos homens, comandados pelo major Febrônio de Brito e organizados em colunas maciças, são emboscados pelos jagunços em terrenos acidentados, no Morro do Cambaio e em Tabuleirinhos. Destacam-se os “bandidos” João Grande e Pajeú, este último considerado por Euclides verdadeiro gênio militar. Reduzidas a cem homens, as tropas do governo decidem voltar.
A terceira expedição - Mil e trezentos homens, comandados pelo coronel Moreira César, armados com canhões Krupp — recém-importados da Alemanha —, sem planos definidos, partiram em fevereiro de 1897, atacando de frente, do Morro da Favela, o arraial de Canudos. Os jagunços, protegidos pela irregularidade do relevo, buscavam o corpo-a-corpo e desorganizaram as tropas, que na retirada desastrosa deixaram para trás armas, munições, os canhões Krupp e o próprio general Moreira César, morto após ter sido ferido em combate.
A quarta expedição - Cinco mil homens, comandados pelos generais Artur Oscar, João da Silva Barbosa e Cláudio Savaget, são enviados pelo sul. As tropas dividem-se em duas colunas. A primeira é cercada pelos jagunços no Morro da Favela e tem de se socorrer da segunda coluna que, vitoriosa em Cocorobó, havia mudado de estratégia, dividindo-se em pequenos batalhões. As duas colunas tentam um ataque maciço. Conseguem tomar boa parte do arraial, mas os soldados mal resistem à fome e à sede.
Em agosto de 1897, oito mil homens deslocam-se para a região, comandados pelo próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt.
São cortadas as saídas de Canudos, o abastecimento de água é interrompido. Um tiro de canhão atinge a torre da Igreja. Estóicos, esperando a salvação eterna, os sertanejos não se renderam, e muitos foram degolados após o assalto final.. Perpetrou-se dessa forma o crime de uma nacionalidade inteira, no dizer de Euclides da Cunha, que a tudo acompanhou do Morro de Uauá, de onde escrevia suas reportagens para o jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, mais tarde refundidas nessa obra monumental que são Os Sertões.

3. ANÁLISES DA OBRA
“OS SERTÕES” Dr. Oswaldo Galotti
O livro apresenta 646 páginas e está, pelo índice, dividido em 10 capítulos.
A TERRA (58 páginas)
O HOMEM (149 páginas)
A LUTA (preliminares - 30 páginas)
TRAVESSIA DO CAMBAIO (36 páginas)
EXPEDIÇÃO MOREIRA CÉSAR (65 páginas)
QUARTA EXPEDIÇÃO (45 páginas)
COLUNA SAVAGET (42 páginas)
O ASSALTO (67 páginas)
NOVA FASE DE LUTA (37 páginas)
ULTIMOS DIAS (55 páginas)

A TERRA (58 páginas)
O autor começa descrevendo, geograficamente, o grande maciço central brasileiro para chegar à região do Vaza-Barris, ao norte da Bahia, onde se passou a Campanha de Canudos. Demarca-a, e descreve sua flora, sua formação geológica e a influência do clima. Procura interpretar sua evolução geológica. Estuda-lhe a hidrografia e a conformação orográfica. Volta a considerar o clima da região expondo uma teoria sobre as secas. Descreve geograficamente as caatingas com toda sua flora específica e a influência que elas sofrem dos climas. Então chega ao “agente geológico notável – o homem que, reagindo brutalmente contra a terra madrasta, vem, historicamente desnudando-o, fazendo desertos. Considera as maneiras de combater os desertos com açudes, etc. Só assim combateria o martírio que ali sofre o homem e que é conseqüência do “martírio secular da Terra”.
Com a descrição do sertão de Canudos sumaria toda a fisiografia do Nordeste.

O HOMEM (149 páginas)
Inicia, expondo o autoctonismo do “homo americanus”. Depois considera a influência da variabilidade mesológica nos três elementos essenciais de nossa formação étnica, dando a gênesis das sub-raças, mestiças, do Brasil. Daí a heterogeneidade racial brasileira e a impossibilidade de futura unidade de raça entre nós, devido a particularidades específicas de cada elemento formador, tão díspar. Para confirmar sua teoria cita exemplos em nossa História.
Mostra o jagunço em sua gênesis, esparramando-se do Maranhão a Bahia, passando pela gênesis do mulato. Expõe a função histórica do Rio São Francisco na dinâmica social dos jagunços, descendentes de paulistas, e no aparecimento dos vaqueiros que se insularam nas regiões do interior. Nesse ponto surge Canudos, aglomerado de alimentos de uma subcategoria étnica já constituída: o sertanejo do norte. Mas a mistura de várias raças dá o tipo desequilibrado, possuidor da moralidade rudimentar das raças inferiores. Insulados, ficaram porém livres de uma adaptação, penosíssima, a um estágio social superior. Faz análises desses nossos patrocínios: o sertanejo, o gaúcho, estabelecendo comparações entre eles. Fala sobre o jagunço, as vaquejadas, a arribada.
Descreve as tradições dos vaqueiros, o estouro da boiada, o folclore, a influência das secas, a religiosidade mestiça. Conclui que as agitações sertanejas são baseadas no fanatismo. Canudos, por exemplo, é uma agitação nordestina, baseada no fanatismo. Monte Santo já era um lugar lendário. Daquela complexidade étnica e sob aquelas influências ecológicas e sociológicas era inevitável o aparecimento de um Antônio Conselheiro. Fizeram-no santo devido ao seu misticismo estranho, quase um feiticeiro. Ele não deslizou para a loucura, porque o ambiente o amparou, respeitando-o. Antônio Conselheiro descendia de cearenses do norte, de gente arrelienta que há 50 anos sustentava uma rixa de família. Infeliz no casamento-abandonado pela esposa raptada por um policial, e por isso fulminado de vergonha - embrenha-se nos recessos dos sertões, surgindo incógnito, missionário sombrio, no nordeste baiano. Era produto condensado do obscurantismo de três raças, criando em torno de si lendas que se espalhavam por toda aquela imensa região. A Igreja tentou intervir, inutilmente. Canudos, que era um lugarejo obscuro antes da vinda do Conselheiro, revivesse com sua chegada, em 1893, crescendo rapidamente, a pau a pique, chegando a possuir 5000 casas, com 15000 a 20000 habitantes.
Todo sertanejo que ali chegasse tornava-se logo um fanático. E, como muitos deles eram bandidos, saqueavam lugarejos, conquistavam cidades vizinhas, depredando-as. Eram subchefes do Conselheiro; José Venâncio, com 18 mortes; Pajeú e seu ajudante – de – ordens Lalau; Chiquinho e João da Mota, Pedrão, cafuz brutal; Estevão, disforme, tatuado à faca e à bala; Joaquim Tranca-pés; “Major”Sariema; o tragi-cômico Raimundo Boca-Torta, do Itapicuru; o ágil Chico Ema; Norberto; o velho Macambira e seu filho Joaquim; Villa-Nova; a figura ridícula, de mulato espigado, de Antônio Beato, meio sacristão e meio soldado; e o chefe de todos João Abbade. Pregavam contra a República, sem convicção, mais “como variante forçada ao delírio religioso”. Um capuchinho lá estivera para converte-los todos. Nada conseguira. Voltando, amaldiçoa a vida.

A LUTA – PRELIMINARES (30 páginas)
Uma desavença antiga com o Juiz de Direito de Joazeiro e não entrega de madeira adquirida nessa cidade para o remate da igreja nova de Canudos, em outubro de 1896, determinaram uma ameaça de assalto àquela cidade por parte do Conselheiro.
Ameaçados, o Juiz pediu ao Governador do Estado da Bahia auxílio. Foi, então, enviada uma força de cem praças, da guarnição estadual, para bater os fanáticos de Canudos. Essa 1ª Expedição de Canudos foi comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, que após longa caminhada bivacou, exausta, em Uauá. Atacada de surpresa pelos soldados de Antônio Conselheiro, abandona a luta. “O revez de Uauá requeria reação segura”. E.C.
A 2ª Expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, da força estadual, veio melhor aparelhada, formada de 543 praças e 3 médicos. Seria a “1ª Expedição regular” contra Canudos. Os fanáticos eram comandados por João Grande, João Abbade, Pahejú, Macambira, pai e filho, José Venâncio e outros.

TRAVESSIA DO CAMBAIO (36 páginas)
A 2ª Expedição fez base em Monte Santo e muito sofreu no ataque planejado, na Travessia do Cambaio, não conseguindo chegar até o arraial de Canudos. Retirou-se em condições penosas.

EXPEDIÇÃO MOREIRA CESAR (3ª expedição) (65 páginas)
A 3ª Expedição, comandada pelo Coronel Antonio Moreira César, mais numerosa e melhor equipada que as duas primeiras, fez base, também, em Monte Santo. Eram 1.300 combatentes, fartamente municiados, com cerca de 350.000 cartuchos e 70 tiros de artilharia. Não passava idéia de alguém um revez. O 1º encontro foi no ribeirão de Pitombas. João Abbade, o “corta-cabeças” , estava no comando da defesa dos jagunços.
Seguiram e fizeram base no alto da favela, defronte Canudos, e daí avançaram sem assegurar a retaguarda ou garantir os pontos perigosos da travessia. Na investida contra a Tróia de taipas dos sertanejos tiveram de recuar. Nessa retirada perderam o comandante Moreira César e pouco mais tarde seu substituto Coronel Tamarindo que os jagunços ergueram, empalado, no galho seco de um angico.

QUARTA EXPEDIÇÃO (45 páginas)
Alarmada com os resultados da luta toda envia batalhões para combaterem os jagunços. Do Rio Grande do Sul, do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Bahia, etc. seguiram soldados regulares para enfrentar inimigo odioso. Eram 5.000 homens, em 6 Brigadas. As 1ª, 2ª e 3ª Brigadas eram comandadas pelo General João da Silva Barbosa e as 4ª, 5ª e 6ª comandadas pelo General Cláudio do Amaral Savaget. O general Artur Oscar era o comandante em chefe. As duas colunas partiram de pontos diversos e deviam se encontrar em Canudos. Estavam com abundância de material de guerra.
A 1ª expedição foi na frente e tomou o caminho das expedições anteriores. Repetiu-lhes erros. Acampada defronte Canudos sitiou o arraial e, em conjunto com a brigada do General Savaget, investiu-o sem sucesso.

COLUNA SAVAGET (42 páginas)
A coluna do General Savaget parira de Aracajú. Possuía 2.350 homens. De Geremoabo a Canudos fazia marcha esclarecida e firme. A margem do Vasa-Barris deu-se o 1° combate de Cocorobó, que termina com ataque dos lanceiros em formidável carga de baionetas e fuga dos jagunços. No dia seguinte a peleja continua, em combate renhidíssimo (Combate de Macambira) com a morte do Tenente Coronel Sucupira.
Unidas as duas colunas a guerrilha continuou, crônica, em refregas furiosas e rápidas, longas reticências de calma, pontilhadas de balas. Os jagunços atacaram a “matadeira”: 11 fanáticos invadiram o centro do acampamento militar para destruir o canhão “Withworth 32” que eles apelidaram “a matadeira”. Estavam comandados por Macambira. 10 foram mortos a baioneta tendo um escapado miraculosamente, varando as fileiras agitadas. As tropas aguardavam uma briga salvadora.

O ASSALTO (67 páginas)
As duas colunas, reunidas defronte Canudos, resolveram atacar. Delineou-se o ataque. Eram 3.349 homens, divididos em 5 brigadas. Seguiram alta madrugada. Tomaram posição de combate perigosíssima e impraticável. Quando a luta começou levaram desvantagem. Caíram em desordem. Despencavam pelos cerros abaixo. E os jagunços, invisíveis das tocaias e dos esconderijos, fulminavam as brigadas. Sitiado o arraial a investida fora sem sucesso. Desorganizados os batalhões cada um lutava pela sua vida. Nessas condições “eram por igual impossível – o avançamento e o recuo”. Tiveram quase 1.000 baixas, entre mortos e feridos. O General Artur Oscar avaliou o estado das coisas e pediu um corpo auxiliar de 5.000 homens. Seguiu, então a Brigada Girard, dirigida pelo General Girard. Eram 1.042 praças, 68 oficiais e 850.000 cartuchos Mauser. Essa brigada não consegui repelir o inimigo! e a retaguarda tinha sido alvejada.
Quando as primeiras levas de feridos e mortos chagaram à cidade do Salvador a Nação surpreendida, abalou-se! Não era possível!

NOVA FASE DA LUTA (37 páginas)
Novos reforços foram então enviados. Mais 2 brigadas, com o total de 3.000 homens, uma entregue ao comando do Coronel Sampaio e outra ao General Carlos Eugênio de Andrade Guimarães. E o próprio Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt foi para o teatro de operações. Conhecedor frio da arte de combater e descobrindo os motivos das derrotas anteriores, conseguiu a vitória da 4ª Expedição e aniquilamento de Canudos. Só fez usar o bom senso aplicado à técnica militar, transmudando aquele conflito enorme, pródigo de inúteis bravuras, numa campanha regular. Alguns chefes jagunços já haviam desaparecido: Pajehú, João Abbade, Macambira, José Venâncio. Restavm Pedrão, Norberto e outros. A 22 de agosto de 1897 falecia Antônio Conselheiro. Os jagunços já não resistiam; recuavam. Canudos estava bloqueado. A insurreição estava morta.
(Fazendo parte do reforço estava um batalhão policial de São Paulo, ao qual Euclides da Cunha se agregou como observador para o campo da luta).

ÚLTIMOS DIAS (55 páginas)
Fato imprevisto: o inimigo, agônico, reage inesperadamente e vigorosamente. Mas logo depois decai a reação, atingindo o desenlace.
Os soldados da República impunham às vítimas cenas cruéis: “Agarravam-n’as pelos cabelos, dobrando-lhes a cabeça, esgargalhando-lhes o pescoço e francamente exposta a garganta, degolavam-n’as” ou “enleado o pescoço da vítima num cabresto, estrangulavam ou esfaqueavam”. Rivalizavam-se aos jagunços em barbaridades.
A 28 de setembro Canudos não respondeu às duas salvas de vinte tiros. Era o fim. Foi dinamitada com 90 bombas nesse dia, terminando em incêndio. Entregou-se o Beatinho e entregaram-se as mulheres e crianças. Fez-se pequena trégua depois da qual recomeçou o tiroteio.
“Canudos não se rendeu”, resistiu até o esgotamento completo.

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Os Sertões, por Rodolpho José Del Guerra
O livro Os Sertões, quase todo escrito em São José do Rio Pardo (pelo menos 75%), foi, no dizer de Euclides da Cunha, "escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante".
É uma obra difícil: vocabulário incomum, assuntos áridos, temas científicos, necessitando-se do dicionário e de bibliografia paralela. A cada leitura que fazemos de Os Sertões, descobrimos coisas novas, que passaram despercebidas na análise anterior.
N’Os Sertões, Euclides se mostra como cientista e artista: o cientista é o engenheiro, o bacharel em matemática, ciências físicas e naturais; o artista é o poeta, o sonhador, o estudioso sensível, "que se lançou à Escola da Praia-Vermelha". Como cientista, ele nos informa com a precisão de um sábio versátil; como artista, ele nos convence e nos encanta com suas palavras transformadas em cores, formas, movimentos, sentimentos...
A harmonia entre a ciência e a arte faz de Os Sertões uma obra imorredoura.
Este resumo tem a finalidade de preparar o pequeno aluno e o iniciante estudioso de Euclides para a leitura da grande obra, dividida em três partes: A Terra, O Homem, A Luta.

I. A Terra
Aqui, vejo Euclides como um diretor de teatro, verificando o grande palco, para apresentar sua peça brasileira. O palco é o sertão da Bahia. Localiza-o e preocupa-se com todos os detalhes do cenário, em constante mutação, com córregos e rios que secam ou transbordam; com tempestades que se formam de hora para outra e que desaparecem em minutos; com desertos que se transformam em paraíso, dando lugar à flora tropical... Analisa todos os detalhes, antes de fazer entrar em cena muitos personagens diferentes, e os soldados das quatro expedições para se iniciar a luta.
E começa o espetáculo, apresentando o planalto central nesta primeira parte do livro, com seus diferentes relevos: no sul litorâneo, as maiores altitudes; em Minas Gerais, as montanhas mais altas entram pelo interior e, caminhando para o norte, na Bahia, o aplainamento geral. Nesta região, está o sertão, com uma ondulação de montanhas baixas, limitado pelo rio São Francisco ao norte e ocidente e, ao sul, pelo rio Itapicuru.
Desconhecido e sempre evitado, esse sertão tem um solo seco, sem umidade, estéril, queimado pelas secas e um clima hostil. Euclides escreve: "(...) tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto".
Alguns rios que o cortam transbordam nas chuvas e somem nas secas, deixando, de longe em longe, algumas poças de água no seu leito. O mais importante deles é o Vaza-Barris que, numa de suas curvas, banha Canudos, rodeada de montanhas.
O clima do sertão é instável: dias tórridos e noites geladas. O ar é seco e essa secura foi descrita em "Higrômetros singulares". Num trabalho de 1974, a professora Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva escreveu: "(...) os cadáveres de um soldado e de um cavalo, mortos na peleja, depois de três meses estavam ainda em perfeito estado, apenas ressequidos como múmias".
As secas são cíclicas e assolam a região. Dizem os caboclos que se as chuvas não vierem de 12 de dezembro a 19 de março, haverá seca o ano todo.
A travessia da caatinga, com sua vegetação resistente, com suas árvores sem folhas, com espinhos e os "gravetos estalados em lanças", é "mais exaustiva que a de uma estepe nua". Na caatinga estão os cajuís, macambiras, caroás, favelas, juazeiros, xiquexiques..., sendo algumas dessas plantas reservatórios de água.
Ipueira
Quando vem a tormenta, o sertão se transforma em paraíso: ressurge a flora, com seu verde, suas flores exuberantes à beira das cacimbas. Ressurge a fauna: catitus, queixadas, emas, seriemas, sericóias, suçuaranas...
No final desta primeira parte, Euclides comenta que os sertões do norte não se enquadram em apenas uma categoria geográfica do filósofo alemão Hegel, ou seja: no verão, vestem-se de "estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas"; no inverno, com as chuvas, transformam-se em "vales férteis, profusamente irrigados". No sertão, as duas categorias se apresentam numa mesma estação.
No capítulo "Como se faz um deserto", o autor cita o homem assumindo "em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos", através do fogo, das queimadas. E apresenta a solução: açudes, que aumentarão a evaporação e as chuvas, como fizeram os romanos em Cartago.

II. O Homem
Nesta segunda parte, os personagens entram em cena: jagunços, sertanejos, o Conselheiro..., isolados há séculos no sertão, o que provocou sua estagnação cultural.
Levados pelo texto, adentramos Canudos e, com a multidão, vamos participar de suas tradições, danças, desafios, e da sua religião mestiça.
Euclides da Cunha estuda a gênese, a formação do brasileiro, resultante dos cruzamentos entre o indígena, o negro e o português. Desta mistura, por muitos motivos, não resulta um tipo étnico único para o Brasil: "(...) não temos unidade de raça".
Historicamente, os cruzamentos entre portugueses e negros se realizaram no litoral, porque o negro vinha para o trabalho escravo nos canaviais da costa brasileira. Entre portugueses e índios, realizaram-se no sertão, pois os gentios se refugiavam no agreste do interior, avessos ao trabalho, por razões culturais.
Para o estudo da formação étnica do sertanejo, Euclides estuda o povoamento das regiões banhadas pelo rio São Francisco. O sul foi povoado pelos bandeirantes; a região média, pelos vaqueiros, e o norte seco, pelas missões jesuíticas.
As cidades que margeiam o sertão de Canudos são originárias de missões e aldeamento de índios, como atestam seus nomes: Panibu, Patamoté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Jeremoabo.... Seus habitantes resultam de cruzamentos, com predominância do índio sobre o branco e sobre o negro.
Isolados pelo deserto, sua mestiçagem foi uniforme. Embora a mistura de raças diferentes seja prejudicial, os sertanejos formaram uma raça forte.
O isolamento de um povo fortalece a espécie, mas é fator determinante da estagnação cultural, provocando o atraso, o conservadorismo, a igualdade de pensar, de sentir, de agir... O isolamento torna-o retrógrado, mas não degenerado.
(Abro parênteses para esclarecer que não só Euclides foi criticado por erros como os que se seguem: os males do cruzamento, o esmagamento total das raças fracas... Outros autores o foram. Euclides se baseava na teoria racial do final do século XIX, que afirmava ser a raça branca sinônimo de progresso, condenando a miscigenação...)
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral. A sua aparência , entretanto, (...) revela o contrário. (...) É desengonçado, torto. (...) Reflete a preguiça invencível, (...). Basta o aparecimento de qualquer incidente (...) transfigura-se. (...) reponta (...) um titã acobreado e potente (...) de força e agilidade extraordinárias." Veste-se de couro, protegendo-se dos espinhos da caatinga. É vaqueiro. Sua cultura respeita antiquíssimas tradições. Torna-se um retirante, expulso pela seca cíclica, mas retorna sempre ao sertão.
Sua religião, como ele, é mestiça. O catolicismo atrasado se mistura aos candomblés do índio e do negro e se enche de superstições, crendices e temores medievais, conservados pelo isolamento, desde a colonização. Ele é crédulo, supersticioso, e se deixa influenciar por padres, pastores e falsos profetas...
este ambiente, surgiu Antônio Conselheiro, que absorveu as crenças do seu meio. Fixou-se em Canudos com seus seguidores, que acreditavam na certeza de ir para o céu se mortos em combate, defendendo uma causa sagrada.

Conselheiro, o Bom Jesus
Conselheiro, Antônio Vicente Mendes Maciel, nasceu em Quixeramobim, no Ceará. Trabalhou com o pai comerciante, que morreu ao se desentender com os Araújos, seus inimigos. Depois dos casamentos das irmãs, ele se casou e logo se desiludiu com a traição da companheira. Envergonhado, mudou-se, sem se fixar: Sobral, Campo Grande, trabalhando como caixeiro e escrivão de juiz. Em Ipu, fugiu-lhe a mulher, acompanhando um soldado. Em Paus Brancos, alucinado, feriu um seu parente que o hospedara...
Desapareceu. "Morrera por assim dizer".
Reapareceu dez anos depois, nos sertões de Pernambuco e em Itabaiana (SE), em 1874, impressionando os sertanejos: alto e magro, barba e cabelos desgrenhados e longos, túnica de brim americano azul, com uma corda na cintura, sandálias, alforje e chapéu de couro, ele pregava nos povoados uma doutrina confusa, que se misturava às rezas de dois catecismos que carregava: "Missão Abreviada" e "Horas Marianas". Pregava o fim do mundo, a preparação para a morte, a penitência... A multidão o seguia, sem que ele a convocasse. Fazia prédicas e profecias, casamentos e batizados, reconstruía igrejas, muros de cemitérios... O clero o tolerava e o procurava, deixando-o pregar, até mesmo contra a República, que interveio em áreas regidas pela tradição e reservadas à religião. Como aumentasse seu ataque, a Igreja tentou interrompê-lo.
Em Bom Conselho, reuniu o povo num dia de feira e queimou as tábuas dos impostos, discordando das leis republicanas do governo de Satanás. O acontecimento repercutiu e a polícia reagiu. Perseguido, o Conselheiro tomou a estrada de Monte Santo, defrontando-se com a tropa em Maceté. Os 30 praças armados atacaram. Os jagunços os desbarataram.

Um olhar sobre Canudos
O Conselheiro - conhecedor do sertão - e seus seguidores tomaram o rumo norte. Chegaram a Canudos, em 1893, uma fazenda abandonada, à margem do rio Vaza-Barris. "Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito" (...) "O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas", sem ordem, sem ruas: um verdadeiro labirinto, com casas de pau-a-pique, habitadas por uma população multiforme, de sertanejos simples, beatas, ricos proprietários que abandonavam tudo em busca da salvação e por bandidos ali protegidos, que respeitavam as regras: rezar e fazer sacrifícios para alcançar a vida eterna. A igreja, uma fortaleza, a mais importante obra do Conselheiro, estava diante da praça. Euclides descreveu a lei mantida por facínoras, as rezas, os sermões, as danças, o dia-a-dia do aglomerado e os tipos fascinantes dos heróis: João Abade, Pajeú, João Grande, Vila Nova, Chico Taramela, Macambira, Beatinho...
Antônio Conselheiro pregava contra a República, contra o governo do Anti-Cristo e da lei do cão. "Mas não traduzia o mais pálido intento político". Os jagunços, "rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa", não conseguiam diferenciar a República da Monarquia.
(Abro um novo parêntese: Algumas mudanças da nova ordem respingavam no sertão: separação Igreja-Estado, obrigatoriedade do casamento civil, cobrança de impostos pelos Estados... : coisas incompreensíveis para os sertanejos).
E o povo versejava e cantava:
"Casamento vão fazendo/ Só pro povo iludir/ Vão casar o povo todo/ No casamento civil".
"Visita nos vem fazer/ Nosso rei D. Sebastião/ Coitado daquele pobre/ Que estiver na lei do cão".
"Eram, realmente, fragílimos, aqueles pobres rebelados..."
"Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta."
"Entretanto enviamos-lhes (...) a bala".

III. A Luta
Os caminhos e montanhas que volteavam Canudos estavam fortificados.
O Conselheiro reinava naquela comunidade, dormindo sobre tábuas, pregando, alimentando-se com farinha..
Em outubro de 1896, o juiz de Juazeiro (BA) recusou-se a entregar a madeira encomendada para a construção da igreja nova de Canudos. O Conselheiro ameaçou invadir a cidade. Foi pedido reforço ao governo.
1ª Expedição. Em novembro de 1896, foi enviada uma pequena expedição, com 104 soldados, comandados pelo Ten. Pires Ferreira. Dia 21, os jagunços os encontraram em Uauá. A tropa retrocedeu, atacada com facões, bacamartes e aguilhões de vaqueiro, e apavorada com os gritos e vivas dos conselheiristas.
Foi o prelúdio da guerra sertaneja.
2ª expedição. O major Febrônio de Brito comandou essa expedição, com 543 soldados, 14 oficiais e 3 médicos, saindo de Monte Santo, em 12 de janeiro de 1897. Sem conhecer a guerra nas caatingas, a tropa foi inesperadamente atacada na estrada que atravessa a Serra do Cambaio. O sertanejo atraía os soldados para a caatinga, que os feria, exaurindo-os. A munição acabava, obrigando a tropa a voltar a Monte Santo. Apesar de 415 jagunços mortos, este segundo insucesso militar provocou impacto nacional.
ª Expedição. Partiu do Rio de Janeiro, com 1.300 homens, em 3 de fevereiro de 1897, comandada pelo Cel. Moreira César. Dia 2 de março, sem um plano tático, a tropa entrou e atacou o arraial, perdendo-se naquele labirinto. Moreira César foi mortalmente ferido, com duas balas, morrendo no dia seguinte. Foi substituído pelo Coronel Pedro Nunes Tamarindo. A tropa fragmentou-se, dispersou-se, debandou em pânico, desfazendo-se de armas e munições, recolhidas pelos jagunços. O corpo de Moreira César foi jogado no caminho.
ª Expedição. Sob o comando do General Artur Oscar, organizaram-se, em 5 de abril de 1897, as forças dessa expedição: 4 brigadas em 2 colunas, com 4.283 soldados. Com roteiros diferentes, as duas colunas encontrar-se-iam em Canudos.
2ª coluna, comandada pelo general Cláudio do Amaral Savaget, com 2.350 homens, partiu de Jeremoabo (SE), em 16 de junho, chegando a Canudos pela Serra de Cocorobó, ao norte, onde venceu os jagunços.
A 1ª coluna, comandada pelo General Artur Oscar Andrade Guimarães, seguiu pelas estradas de sempre, partindo de Monte Santo (BA), em 19 de junho, com 1.933 soldados. Foi atacada no Morro da Favela. Depois de insucessos e ataques, juntou-se à 2ª coluna.
Os sertanejos foram encurralados em Canudos, resistindo à superioridade de homens e armamentos, sob os tiros da matadeira (canhão) e de dinamites.
Faltaram víveres aos soldados. Para alimentá-los, muitas rezes e cavalos foram mortos na região. Logo, o Ministro da Guerra, Carlos Machado Bittencourt (foto), os abasteceu.
Completou-se o cerco de Canudos, com jagunços enfrentando fome e sede, bombardeios e incêndios.
Dia 22 de setembro de 1897, uma disenteria quase dizimou os fiéis, matando Antônio Conselheiro. Os sobreviventes defendiam a Aldeia Sagrada.
Caiu Canudos, em 5 de outubro de 1897, "ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. (...) No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas. (...)"
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. (...) Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa (...) ! Fotografaram-no depois. (...)’’. Cortaram-lhe a cabeça. "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. (...) Ali estavam (...) as linhas essenciais do crime e da loucura..."